"Perdeu-se cachorra idosa e cega. Atende pelo nome de Lua. Dona doente. Recompenso bem", dizia o cartaz afixado em uma das árvores da pracinha aqui perto e em muitos outros pontos espalhados por todo o bairro. Cachorreira que sou, olhei a foto e meu coração deu um pulo: aquela pequena vira-lata branca e gorducha só podia ser a Lua da dona Francisca!Lembro das duas caminhando devagar, dona Francisca parando de vez em quando para tomar fôlego, a bengala em uma mão e a guia na outra. Sentava-se no banco da praça, punha a Lua no colo e logo começava a conversar com quem estivesse próximo. Dona Francisca já enxergava muito pouco, "só vultos", como dizia, e a cachorra, com quase catorze anos, estava completamente cega.
De vez em quando nos encontrávamos e conversávamos sobre tudo e principalmente sobre cachorros. Tenho um casal da raça shih-tzu, de origem chinesa, dois ursinhos pequenos e peludos, mistura de branco, cinza e caramelo, os olhos saltados e as carinhas mais doces do mundo. Teoricamente, são tranquilos e silenciosos, conhecidos por serem os guardiões dos mosteiros do Tibet – mas os meus, até bem pouco tempo, pareciam guardiões da Vai-Vai: não paravam um minuto, em um pega-pega constante, com latidos e rosnados que provocavam reclamações diárias aqui em casa; só para mim é que já tinha virado barulho de geladeira, eu nem percebia mais. Mas não tinha como não perceber os estragos nos móveis, que estavam sendo destruídos aos poucos e eu já via o dia em que ia entrar em casa e encontrá-la totalmente vazia. Ia contando tudo isso para a dona Francisca na praça e ela dava risada. "O que é que eles estão fazendo agora?", perguntava. Eu ia narrando a cena de todo dia: soltos, subiam o morro correndo um atrás do outro, no topo se atracavam, perdiam o equilíbrio e desciam rolando, embolados e rosnando, chegavam marrons de tanta terra. Aí começavam tudo de novo, isso quando o macho não ia peitar pit bulls e dobermans que passavam do outro lado da calçada – aliás, faz isso até hoje.
A Lua ficava lá, ouvindo tudo, quietinha no colo. Dona Francisca suspirava: "Ah, minha filha, somos eu e ela só. A velhice na solidão, ainda mais sem enxergar quase nada, é muito triste. Se eu perco ela também, como é que vai ser?" Espírita, contava que quando os animais morrem, permanecem na casa com o dono e só partem com ele, quando também se vai. Achei essa ideia tão bonita que passei a acreditar nela. E continuava: "Chico Xavier disse uma vez que nós somos os guardiões deles e é verdade, não sei como tem tanta gente que judia de bicho. Mas em casa é a Lua que me guarda, sempre foi, sempre ali do lado, em muitos momentos de tristeza ela parecia que sabia e vinha perto para me consolar".
Depois de ver o cartaz, passei quase um mês alternando os caminhos que fazia a pé e indo cada vez mais longe, na esperança de encontrar a Lua. As chuvas foram arrancando e transformando em borrões as fotos dos cartazes das árvores e dos muros. Ligava para a dona Francisca e uma prima atendia sempre, dizendo que ela estava de cama por conta do sumiço da cachorra. A notícia veio da praça: encontraram a Lua! Dei um grito de alegria e fiquei sabendo que ela estava o tempo todo em uma casa do bairro mesmo; havia sido recolhida por uma senhora também só, que quase não saía; cuidou dela e devolveu para a dona Francisca no mesmo dia em que viu um dos cartazes na parede de uma padaria.
Mas a Lua não resistiu à aventura fora de casa e morreu dois dias depois, no colo da dona, enquanto as duas dormiam em frente à tevê. Passei por lá no bonito final de tarde de ontem, primeiro de maio, e vi o jardim com um montinho retangular de terra em cima e, em toda a volta, as bolinhas e os bichinhos coloridos de borracha que serviam de brinquedo e uma tigela com água do lado. O mato em volta farfalhou e não tinha vento. Sabia que era ela. Eu e os cachorros ficamos na rua, olhando, curiosos, para dentro do portãozinho. Tchau, Lua.
email: outrosolhares@terra.com.br
twitter: @OutrosOlharesAD
Mais um texto tocante para quem como eu ama os cães. Repito que sinto falta das crônicas simples, quase poemas, que Outros Olhares faz como poucos, com tanta alma e sensibilidade. Um abraço.
Agradeço, J.C.,grande abraço!
História simples e comovente, comecei melhor meu dia, obrigada!
Lúcia, bom dia.
Uma graça este post, me peguei com os olhos marejados e não resisti em cumprimentá-la.
Senti saudades da nossa Pipoca, que cresceu com meus filhos, e como você quero acreditar que ela ainda está por aqui.
Beijo!
Obrigada a você, Ângela, pela mensagem!
Fico feliz que tenha gostado, Ana Cláudia, um beijo!
Linda história, emocionei-me muito, que blog diferente!!!
Parabéns!!!
Agradeço, Vilma, um abraço!
Sou apaixonado por este blog. Não é somente diferente, é diferenciado. Uma pequena pérola esta crônica, que reune a cegueira, a audiodescrição e uma enorme sensibilidade. Sem anestesia.
Lucia, seu texto é bonito demais!!! Adorei…
Muito obrigada, Lívia…
Grande beijo!